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Leni Riefenstahl: arte e propaganda em tempos sombrios

  • junho 5, 2025
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Leni Riefenstahl revolucionou o cinema, mas seu uso da arte como propaganda nazista levanta dilemas éticos e estéticos até hoje.

Leni Riefenstahl: arte e propaganda em tempos sombrios

Leni Riefenstahl é um dos nomes mais controversos do século XX. Para alguns, foi uma revolucionária da linguagem cinematográfica, uma mulher à frente de seu tempo que, em pleno regime patriarcal, conquistou espaço como diretora, montadora e atriz. Para outros, foi a artista que ajudou a promover um dos regimes mais violentos da história. Esta coluna mergulha na trajetória de Riefenstahl, contextualiza seus principais filmes, mostra suas inovações técnicas e levanta questionamentos éticos que permanecem atuais.

Ascensão artística em meio ao caos

Helene Bertha Amalie Riefenstahl nasceu em 1902, em Berlim. Começou sua carreira como dançarina, migrou para a atuação e se destacou nos chamados “filmes de montanha”, romances de ação nos Alpes, populares nos anos 1920. Nessas produções, ela realizava suas próprias cenas arriscadas, o que a tornou conhecida num universo cinematográfico então dominado por homens.

Leni Riefenstahl

Mas o verdadeiro ponto de virada veio nos anos 1930, quando Adolf Hitler e o ministro da propaganda Josef Goebbels se encantaram por sua imagem e seu talento. Hitler chegou a chamá-la de “a personificação da feminilidade alemã”. Pouco depois, ela seria contratada para criar filmes que moldariam a estética e a mitologia do nazismo.

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Triunfo da Vontade (1935): o cinema a serviço do Führer

Leni Riefenstahl e Adolf Hitler
Adolf Hitler e Leni Riefenstahl

Produzido por encomenda direta de Hitler, Triunfo da Vontade documenta o Congresso do Partido Nazista realizado em Nuremberg, em 1934. Mas não se trata de um simples registro: Riefenstahl transformou o evento em um épico cinematográfico, onde Hitler surge como um semideus vindo dos céus para redimir a Alemanha.

Com movimentos de câmera até então incomuns, planos aéreos, uso intenso de closes e ritmo de montagem quase coreográfico, o filme inaugurou uma nova forma de fazer documentário, com uma narrativa emocional, visualmente envolvente e ideologicamente carregada. Para o historiador Rainer Rother, essa obra “mudou os documentários para sempre”, ao retratar um evento real com o impacto e a estética de uma ficção cuidadosamente orquestrada.

Contudo, sua função era clara: legitimar o regime nazista aos olhos da população. A obra ainda é considerada o filme de propaganda mais bem-sucedido da história e, ao mesmo tempo, um exemplo perturbador de como a arte pode ser usada para fins autoritários.

Olympia (1938): o corpo como ideologia

Filme Olympia – Festival dos Povos
Pôster promocional do filme "Olympia – Fest der Völker" (Olympia – Festival dos Povos), dirigido por Leni Riefenstahl.

Dois anos depois, Riefenstahl recebeu outro desafio: filmar os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. Com orçamento equivalente a 20 milhões de dólares atuais, ela colocou câmeras em locais inéditos, submersas em piscinas, sobre trilhos nas pistas de atletismo, nos topos de torres e plataformas móveis para captar os atletas em ângulos até então impensáveis.

O resultado foi Olympia, um marco na filmagem esportiva. Com uso de câmera lenta, montagem precisa e foco nos corpos em movimento, o documentário se transformou em uma ode à forma física, ao controle, à perfeição atlética. No entanto, como alertou a crítica Susan Sontag em seu ensaio “Fascinante Fascismo”, essa exaltação do corpo, da força e da obediência a um ideal coletivo carrega consigo a estética fascista, mesmo quando desprovida de contexto político explícito.

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Inovações técnicas que moldaram o audiovisual

Bastidores de uma produção cinematográfica
— Leni Riefenstahl — observando cuidadosamente o enquadramento da cena.

Leni Riefenstahl trouxe ao cinema recursos até então inexplorados. A montagem rítmica que desenvolveu em parte se deve à sua experiência como dançarina: sabia como criar cadência e tensão visual. Foi pioneira no uso de câmeras móveis e da câmera lenta para fins dramáticos,algo que hoje é comum em coberturas esportivas, comerciais e videoclipes.

A estética de Olympia foi replicada em comerciais de perfume, desfiles de moda e até videoclipes de bandas como Rammstein. Madonna e Jodie Foster chegaram a manifestar interesse em interpretá-la no cinema, mas os projetos não foram adiante.

O problema é que a influência da estética de Riefenstahl se espalhou de forma muitas vezes acrítica, sendo replicada em obras que ignoram o contexto sombrio de sua origem. A força visual de sua arte continua presente, mas nem sempre com o mesmo cuidado ético.

Entre arte e horror: os bastidores de Tiefland

Durante as filmagens de Tiefland (1954), iniciadas ainda na Segunda Guerra, Riefenstahl usou prisioneiros de campos de concentração como figurantes. Posteriormente alegou que todos haviam sobrevivido, uma afirmação contestada por documentos que indicam que muitos foram enviados a Auschwitz e mortos.

Leni Riefenstahl - 1930
Bastidores durante uma produção nazista na década de 1930

Além disso, relatos de seu envolvimento indireto com massacres nazistas complicam ainda mais sua biografia. Um caso emblemático ocorreu na Polônia, quando ela teria solicitado a retirada de judeus de uma cena. Soldados nazistas interpretaram a ordem como autorização para execução. Riefenstahl negou envolvimento direto, mas foi acusada de ser catalisadora do crime.

Essas informações vieram à tona com a abertura de seu arquivo pessoal, doado à Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano após sua morte em 2003. Centenas de caixas com fotos, cartas, gravações e filmes revelaram uma relação mais profunda com o regime nazista do que a cineasta admitia publicamente.

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Tentativas de reinvenção e a sombra permanente

Leni Riefenstahl, “The last of the Nuba” (1977).
Leni Riefenstahl, “The last of the Nuba” (1977).

Após o fim da guerra, Riefenstahl buscou distanciar-se do passado, fotografando tribos africanas e produzindo documentários sobre a vida marinha. Viveu meses com a tribo Nuba no Sudão, registrando seus rituais e tradições. Muitos viram nesses trabalhos uma tentativa de se redimir. Outros, como Susan Sontag, afirmam que mesmo ali persistem os traços da estética fascista, a idealização da força, a simetria corporal, o culto à disciplina física.

Na década de 1970, em uma entrevista à TV alemã, Riefenstahl negou qualquer conhecimento sobre o Holocausto. Sua tentativa de apagar o passado dividiu opiniões: centenas de espectadores ligaram em sua defesa, enquanto outros se disseram chocados com a negação histórica.

Leni Riefenstahl viveu até os 101 anos e morreu em 2003. Sua história permanece um paradoxo. De um lado, foi a primeira mulher a dirigir e produzir grandes obras cinematográficas em uma época extremamente machista. Em A Montanha Sagrada (1926), aos 24 anos, já estrelava como protagonista, e aos 29 dirigia suas próprias obras. Se não fosse o envolvimento com o nazismo, talvez fosse reverenciada como ícone do feminismo na história do cinema.

Leni Riefenstahl: Arte, ética e escolhas

Leni Riefenstahl

Por outro lado, construiu sua imagem pública com frieza e manipulação. Segundo Ray Müller, documentarista que trabalhou com ela, Riefenstahl era obcecada por controle e negava qualquer responsabilidade política, mesmo diante de provas. Em certa ocasião, após sobreviver a um acidente de helicóptero no Sudão, sua primeira preocupação foi: “Você filmou direito como me tiraram do helicóptero?”

A história de Leni Riefenstahl é um alerta poderoso. Mostra como o talento pode ser seduzido pelo poder e como a arte, mesmo quando tecnicamente sublime, pode ser usada para fins destrutivos.

Hoje, em tempos de uma nova ascensão de ideologias autoritárias ao redor do mundo, seu legado continua relevante. Ao romantizar a força e desprezar os mais fracos, suas imagens ecoam discursos perigosos. A estética fascista, como diria Sontag, não está morta, ela sobrevive em símbolos, gestos, enquadramentos e discursos.

Separar arte e política pode ser confortável, mas nunca é neutro. Riefenstahl nos obriga a pensar: de que lado queremos estar quando a estética encobre o autoritarismo?

🎞️ Filmes mencionados:

  • Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935)

  • Olympia (1938)

  • Tiefland (filmado entre 1940 e 1944, lançado em 1954)

  • A Montanha Sagrada (Der heilige Berg, 1926)

Se você nunca viu um filme de Riefenstahl, talvez já tenha visto sua influência em comerciais, videoclipes, cerimônias olímpicas e até convenções políticas. E talvez, agora, perceba que a pergunta mais importante não é “isso é bonito?”, mas sim: “isso está servindo a quem?”

Tabela Filmes dirigidos por Leni Riefenstahl

📝 Notas adicionais

  • A Luz Azul (Das blaue Licht, 1932) foi o primeiro longa-metragem dirigido por Riefenstahl, no qual também atuou como protagonista. O filme é uma fábula ambientada nos Alpes e destaca-se por sua estética visual inovadora para a época.

  • A Vitória da Fé (Der Sieg des Glaubens, 1933) documenta o 5º Congresso do Partido Nazista em Nuremberg. Após a execução de Ernst Röhm na Noite das Facas Longas, Hitler ordenou a destruição de todas as cópias do filme, que foi considerado perdido até ser redescoberto nos anos 1980.

  • O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935) é amplamente reconhecido como uma das obras mais eficazes de propaganda política, retratando o 6º Congresso do Partido Nazista com uma abordagem estética que glorifica o regime.

  • Olimpíada (Olympia, 1938), dividido em duas partes, documenta os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. O filme é notável por suas inovações técnicas, incluindo o uso de câmeras subaquáticas e movimentos de câmera inovadores, influenciando a cinematografia esportiva subsequente.

  • Terra Baixa (Tiefland, 1954) é uma adaptação da ópera homônima e foi filmado entre 1940 e 1944, mas só foi lançado após a Segunda Guerra Mundial. Durante as filmagens, Riefenstahl utilizou prisioneiros de campos de concentração como figurantes, o que gerou controvérsias posteriores.

  • Impressões Subaquáticas (Impressionen unter Wasser, 2002) é um documentário que apresenta imagens subaquáticas captadas por Riefenstahl ao longo de quase 30 anos. O filme foi lançado pouco antes de seu centésimo aniversário e destaca a beleza do mundo subaquático.

  • Riefenstahl (Riefenstahl, 2024), dirigido por Andres Veiel, é um documentário contemporâneo que revisita a vida e a obra de Leni Riefenstahl com uma abordagem crítica e contextualizada. O filme investiga as contradições da cineasta alemã, confrontando sua contribuição estética ao cinema com sua participação na máquina de propaganda nazista. A produção combina imagens de arquivo, entrevistas com historiadores e especialistas, além de trechos de seus próprios filmes, oferecendo um retrato complexo de uma figura que continua a gerar debates sobre arte, ética e memória histórica.

Para mais detalhes sobre a filmografia de Leni Riefenstahl, você pode consultar sua página no IMDb:

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